"E na clareza das palavras o mundo se fez entender..." (Victor Ferreira)

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Distância.com


Há dias conversava com um senhor de aproximadamente seus 60 anos e este relatava que no posterior final de semana lhe esperava o 35 reencontro de sua turma de faculdade, ocorrido anualmente e dotado da presença de todos os antigos universitários. Quase todos, aliás. O tempo vinha se encarregando de aos poucos levar componentes à outros planos e, quem sabe, mais tarde, promover os reencontros na imensidão. O senhor comentava que o contato entre os amigos permanecera constante desde a conclusão do curso e, mesmo num tempo em que os meios de comunicação eram precários, a separação não foi motivo de isolamento.

Pus-me a pensar como isso podia realmente acontecer, visto que os emails não fariam as chamadas, o Orkut não permitiria uma discussão de onde poderia ser realizada a comemoração, as sms no celular não trariam os lembretes para quando a data se aproximasse e o Msn não manteria constante o contato. É mesmo possível que há 35 anos a turma de faculdade se reencontre?

Ao mesmo tempo, a velha reflexão sobre a superficialidade dos relacionamentos que atinge a modernidade também me veio à cabeça. Talvez, há 35 anos, a turma mantenha laços firmes de amizade, lealdade e companheirismo. Laços que as redes de comunicação atuais, mesmo permitindo a instantaneidade das informações, não pode construir. A tecnologia cada vez mais produz avanços que proporcionam a maior integração dos homens e estes, em contrapartida, cada vez mais se isolam em mundos só seus. Mundos, que muitas vezes, não passam de uma rede virtual.

Quer dizer que o problema está aí? Talvez. É tão mais simples discutir à distância, visto que os olhos não se cruzam. É tão mais simples dizer a mentira à distância, visto que não existe o corpo pra denunciar. É tão mais simples dar recado à distância, visto que o marasmo é uma constante do nosso tempo. Já peguei-me milhões de vezes à me comunicar com meu irmão por uma rede de mensagens instantâneas, estando ele não mais longe que no quarto ao lado. E nisso tudo, onde fica a troca dos calores humanos? Há realmente uma maior interação entre os povos ou há uma maquiagem que proporcione tal interação? Uma maquiagem até de emoções, digamos.

Voltemos à turma reencontrada. No tempo que se formou, os sentimentos ainda eram reais. Eram completos. E foi a verdade deles que moveu os amigos, mesmo sem recursos comunicativos a seu dispor, a continuarem assim, em amizade.

Mais uma controvérsia se soma às diferenças absurdas de nossa sociedade. E não culpemos a ciência, a tecnologia ou as descobertas contemporâneas por isso. Santos Dumont não criou o 14Bis à fim de ser instrumento de guerra. Falta ao homem saber utilizar o que lhe é oferecido para, assim como a turma do senhor meu amigo, manter laços verdadeiros de afeto e companheirismo. Aos avanços tecnológicos, somarão-se os avanços espirituais.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Ainda que


"Ainda que a métrica não esteja definida
Nem as estrofes obedeçam o padrão
Aqui vão os meus versos
Os versos do meu coração...



Ainda que

(Victor Ferreira)

"Ainda que os valores se percam
Que os números enfim prevaleçam
E os homens sejam o que têm
O amor não se foi de vez

Ainda que barreiras separem nações
Bombas arrasem multidões
E guerras sejam rotineiras
O amor não se foi de vez

Ainda que se tenham excluídos
Que o preconceito não seja banido
De tolerância não se ouça falar
O amor não se foi de vez

Ainda que de fome morra gente
Que penalizem os inocentes
E a miséria seja comum
O amor não se foi de vez

Ainda que o dólar não tenha alta
As especulações estejam em falta
E a Bolsa ameace quebrar
O amor não se foi de vez

Ainda que roubem os políticos
Que os poderes estejam corrompidos
E livres estejam os maus
O amor não se foi de vez

Ainda que aqueçam a terra
Que destruam as florestas
E a fauna entre em extinção
O amor não se foi de vez

Ainda que se mate por pão
Que vidas disputem o lixão
E trapos confudam homem e bicho
O amor não se foi de vez

Ainda que o tráfico domine favelas
Que mães acendam velas
E morram jovens em varejo
O amor não se foi de vez

O amor pois está escondido
Quem sabe até perdido
Procurando onde possa ser rei

Em pedaços se dividiu
E de singelo repartiu
A felicidade no mundo inteiro
No sorriso de uma criança
Numa troca de alianças
Ou no desabrochar de uma flor
Este não se esquivou

Colheu como quem colhe flores
Procurou os momentos mais doces
Para poder se apresentar
Sem muita exuberância
Dispensou a arrogância
Só assim se fez achar

Ainda que o amor caia
Ainda que o mal aja
E ainda que seja pouco o freguês
Ele não perde o encanto
Está em algum canto
O amor não se foi de vez..."



















sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010


"Dormir bem para viver melhor! 1,93 x 2,03 m de puro progresso e conforto. Além de desfrutar da magia magnoterapêutica e do benéfico poder da Freqüência Quântica, você ainda conta com o melhor em matéria de conforto, padrão de qualidade, resistência e durabilidade. O colchão bioquântico traz em sua composição homeopática a prevenção contra doenças cardíacas, tensões musculares e problemas respiratórios. Ainda é dotado de ação antiflamatória, aliviando dores e diminuindo inchaços. Promove a renovação celular e possibilita uma maior comunicação entre células nervosas. Previne e combate o estresse. Elimina toxinas do organismo, proporcionando um sono profundo e reparador. Acelera a recuperação nos processos traumáticos e pós-operatórios. Diminui a acidez do sangue, auxilia nos casos de fibromialgia e colabora nos tratamentos osteoarticulares. Toda essa grade de benefícios por apenas 12.000 $! É isso! 12.000$! Tenha o sono dos seus sonhos!" (Folheto publicitário)


"Sinha Vitória pensou de novo na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se acostumado, seria mais agradável dormirem numa cama de lastro de couro, como outras pessoas (...) Outra vez sinha Vitória pôs-se a sonhar com a cama de lastro de couro (...) Sinha Vitória desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual à de seu Tomás da Bolandeira. (...) Bem. Poderiam adquirir o imóvel necessário economizando na roupa e no querosene." (Vidas Secas - Graciliano Ramos)


Quando um folheto publicitário me veio às mãos ontem, em cujo conteúdo se revelavam as milacrias promovidas por um colchão mágico, o drama da família protagonista de Vidas Secas, obra de Graciliano Ramos, e o pequeno sonho da matriarca, uma cama de lastro de couro, me permitiram uma comparação instantânea sobre a dimensão que os sonhos vêm tomando. Aliás, se estão deixando de existir para dar lugar a um consumismo cada vez mais intenso e de relevante dimensão na vida dos nossos cidadãos.

Graciliano, quando pensou nas perspectivas que a personagem Sinha Vitória traria, de maneira a generalizar os sonhos do Brasil Miserável, não exagerou nem viajou demais. O móvel igual ao de Seu Tomás da Bolandeira que viesse a substituir a cama de varas repleta de lombos em sua composição, traria a felicidade para a mãe de família. Uma felicidade pura.

A felicidade, porém, que Sinha Vitória sentiria, seria de igual proporção à felicidade com que alguém deitaria no colchão bioquântico? Trocando em miúdos: alguém que pode dar doze mil reais em um colchão, acreditando nos seus poderes medicinais, sentiria o mesmo prazer ao lhe adquirir? A vontade de possuir tal produto é tão pura e despretenciosa quanto a de se possuir uma tão distante cama de lastro de couro? E a distância que lhes separa? A mesma? A publicidade que o colchão traz talvez já não conheça o quanto de perturbações se acompanham seus usuários e sua busca pelo livramento à qualquer custo das enfermidades que, na verdade, estão cravadas na alma?

Acredito que se fosse hoje escrever, Graciliano ainda insistiria na discussão social. Sabendo de tal colchão, revelaria quantos milhões de indivíduos dormem entre pontes e papelões e quantos podem desembolsar as mil dúzias de reais para a compra do artigo. Em entrevista sobre a obra, mostraria que a Casas Bahia lhes oferece a partir de 80,00 $ e que 1 colchão de ilusões equivale a 150 colchões de necessidade.

Se não deixasse a ousadia de lado, e os valores não fossem poupados, perguntaria se a solução para a euforia do homem moderno estava de fato no consumo. Perguntaria se a queda na Bolsa de Valores, a subida do dólar e os ajustes salariais desvantajosos poupariam o milionário, mesmo deitado no tapete de Aladim, do estresse e dos problemas cardiovasculares. Com ajuda do IBGE, Graciliano compararia a expectativa de vida do frenético homem urbano com a do humilde cidadão rural. E os leitores se perguntariam se é uma cama imperial que realmente traz qualidade de vida.

E o público ainda pensaria se alguém dara os 12.000 com esforço ou se o investimento tivera sido feito porque o consumidor não mais tinha com o que gastar. A este, mandaria emails com dados conscientizadores, parecidos com o da Casas Bahia, e lhe indicariam alternativas mais humanas para o emprego de seu dinheiro.

Voltemos ao anúncio. Ao anúncio somente. Visto que Graciliano não mais escreve, Sinha Vitória se distribui em milhões pelo mundo e as camas de lastro de couro continuam sendo outros milhões de sonhos. E é bem provável que sejam muito mais desejadas do quê os colchões de ouro. A conscientização não existe, o consumismo cresce e a felicidade, coitada, mais cara e inalcansável pros que mais podem adquirir o resto das coisas.