"E na clareza das palavras o mundo se fez entender..." (Victor Ferreira)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Tablet da felicidade


No início deste ano publiquei aqui no blog um artigo cujo tema abordava a contradição que o uso da internet e dos meios de comunicação modernos vêm apresentando. O texto ressaltava que embora tais instrumentos encurtem as distâncias comunicativas, as relações humanas têm sofrido um distanciamento, uma superficialidade cada vez maior.


O tema volta à tona. Eis que com o surto dos Ipads, Smartphones, e a acessibilidade cada vez maior a computadores portáteis, tal como aconteceu com os aparelhos celulares ao longo da década de 90, pude dar de cara com cenas que revelam a alienação que o homem moderno se deixa levar.


Escrevo agora num ônibus a caminho da universidade. Ao meu lado está sentada uma jovem que escuta algo com fones no ouvido. Nas cadeiras da frente, uma senhora bem arrumada e um rapaz estudante também portam os ouvidos biônicos. Há pouco, um pedinte irreverente entrou no transporte e contou piadas que levaram os passageiros aos risos. Os musico-antenados mal se tocaram que existia alguém fazendo humor alí. Perguntar a hora, comentar sobre o calor, reclamar que o ônibus pára demais ou falar que o engarrafamento na Hermes é de tirar a paciência, só se for em consentimento ou telepatia. Nem mais engatar um diálogo curto, de ideias trocadas em vão, seria possível numa circunstância desta.


Aí me lembrei de uma senhora pra lá de caduca, que certa vez entrou no ônibus quando eu me acompanhava de um amigo. Ele ofereceu o seu lugar e ela aceitou. Só que permaneceu em pé, com a cadeira desocupada.


- A senhora não vai sentar? - Perguntei.


- Vou, meu filho. Estou esperando a cadeira esfriar!


Quando a figura finalmente se sentou, iniciamos um papo daqueles. Cheio de viagens, cronologia, abstrações, risos e muita, mas muita sinceridade. Em meio às suas pérolas, chegamos ao assunto Universidade. Entre mordidas no sabugo de milho que carregava e remexidas nas suas várias sacolas, ela indagou:


- E você já faz faculdade?


- Faço! Faço sim.


- Faz o quê? Direito ou Medicina? Vai ser doutor?


- Não! Eu faço jornalismo!


- O QUÊ? JORNALISMO? - Arregalou os olhos.


- Aham


- Vixe Maria... Meu filho, se eu lhe disser uma coisa, você promete que não fica chateado?


- Pode falar.


- Minha amiga tem uma filha que fez isso e hoje ela faz sabe o quê? Quentinha, meu filho! Quentinha!


Mal consegui respondê-la. Já me perdia em risos. Que figura!


- Mas minha senhora, ou a filha da sua amiga não era uma boa jornalista ou ela realmente gostava de fazer quentinhas e estava fadada a isso. Deveria ter feito gastronomia!


- E é?


- É. É sim!


O papo ainda se estendeu por um bom tempo e ela finalmente aceitou minha escolha profissional. Perguntou até se eu queria apresentar o Jornal Nacional. Respondi que seria uma boa, mas ela completou:


- Mas só quando "Boni" morrer, né?


Quanta programação! Cheguei à aula motivado. Sem ironia! Motivado sobretudo a escrever sobre isso. Porque cada vez mais tenho a certeza de que a comunicação move o mundo. E um papo assim, mesmo sem escrúpulo algum, deixou-me muito melhor que um silêncio provocado pela alienação tecnológica.


Outrora, aguardava minha vez num consultório médico quando algo parecido me chamou atenção. Um casal de seus aproximados 30 anos navegava nas redes sociais pelos seus Smartphones e empolgava-se nos papos que alí eram gerados. Víamos nas feições. A diferença é que cada um utilizava o seu, em mundos que pareciam completamente distintos. Tão conectados virtualmente, mas completamente dessintonizados na vida real.


Entendam que minha posição não é anti-tecnológica nem de aversão aos instrumentos que só vêm para simplificar a nossa vida. Ao contrário, sou adepto das redes sociais (muito embora ainda não tenha aderido ao Twitter) e acredito numa comunicação, tal como numa cultura digital. Mas o erro está no uso com que estes instrumentos estão sendo manipulados. Lembro-me de uma amiga mais velha contando que assim que o aparelho televisor foi lançado, a rua inteira se juntava na casa de sua vizinha para ver, mesmo completamente mal sinalizadas, as imagens que ali surgiam. O problema não deve estar na inovação em si.


Vamos à teoria. Para o jornalista e acadêmico Muniz Sodré, há uma diferença enorme entre vínculo e relação. Vínculo seria um contato profundo, surreal ao sujeito. Já a relação se estabelece nos contatos sociais, de padrões pré-estabelecidos. Portanto, pode-se ter uma relação sem se estabelecer um vínculo.


A visão de Sodré se aproxima da visão do estudioso em comunicação Martin Barbero, quando este relata, em entrevista cedida à Folha de São Paulo, que as redes sociais da modernidade permitem um gigantesco contato entre os seus usuários, mas é utópico pensar que vínculos também são estabelecidos. A sociedade moderna é completamente distinta da comunidade originária, onde os vínculos eram realmente presentes.


Portanto, em vez de realmente haver uma democratização e um avanço nas relações sociais, já que os caminhos para isso se apresentam bem mais abrangentes, internautas e adeptos da tecnologia vivem mundos cada vez mais fechados, irreais e repletos de ilusão.

Assistia a uma aula cuja professora, completamente antenada nesse mundo à parte (Sodré define como Bios Midiático), soltou que seu sonho, naquele momento de sua vida, era um Tablet. Alguns arregalaram os olhos. Que sonho mais puro! Que sonho mais singelo! Tanta gente sonhando em ganhar na Mega-Sena, viajar pela Europa, etc. e a minha professora sonhando com um tablete?

- Tablete de quê, professora? - Um colega perguntou.

- Ora, ora, ora. Você não sabe o que é um Tablet? - Retrucou espantada. O Bios que ela vivia não era o que meu colega, nem muito menos eu, vivíamos.

- Tem vários, professora. Pode ser de chocolate, rapadura...

A turma caiu em risos. Só mais tarde descobrimos que Tablet era mais um mundo portátil, que devia conter mais e mais funções que faziam a professora estar aqui e alí ao mesmo tempo. Algo como o aparelho que ela usou quando esperávamos há mais de meia-hora por sua aula e seu Twitter declarou "Estou presa num engarrafamento".

Findo então meu desabafo. Mais uma vez, peço que não me interpretem como um Fred Flintstone ou um atrasado no tempo. Estou nos sistemas de mensagens instantâneas, nas redes sociais, e quem sabe mais à frente até com um Tablet, embora ele não venha a ser, jamais, o condicionante de meus sonhos ou de minha felicidade. Que todos esses meios possam ser instrumentos de construção e fortalecimento de relações, e que não mais fujam da realidade na qual estamos inseridos. Corpo a corpo, telefone, email, MSN, scrap, SMS, Twitter, blog, não importa. Em todos prezarei pela comunicação sincera, direta e eficiente.




domingo, 21 de novembro de 2010

Nada demais vai acontecer

A história que aqui segue é real* e fez parte do baú de tesouros que descobri nos 7 meses de trabalho no H. I. Varela Santiago, instituição que me permitiu crescer sem freios como ser-humano, como cidadão, como espírito.
Muito embora esteja dotada de muita religiosidade, visto que esta era uma característica marcante do personagem que a ilustra, a magia que havia nele está longe de ser classificada como qualquer coisa criada pelos homens.
Embarquem na história mais impressionante que eu já ouvi. E mais, que eu tive o presente de conhecer quem a vive. Boa leitura!

*Os nomes são fictícios


9h15. Terça-feira. Lá fora o dia era de sol. O calor tomava conta do pátio do COHI (Centro de Onco-Hematologia Hospitalar), e eu, já aborrecido, esperava há 15 minutos por uma reunião que atrasara, quando Eduardo, o protagonista dessa história, pendurou o soro no suporte que se encontrava em frente ao conjunto de cadeiras no qual eu estava sentado, acomodou-se, e falou com a voz embargada:

- 45 dias.


Meu rosto enrubesceu e uma vergonha que nunca havia sentido antes tomou conta de mim. Vergonha de mim mesmo.


Como considerar justificável o incômodo que eu sentia há pouco menos de meia hora por ser contrariado no horário marcado para a reunião tendo ali, ao meu lado, com o espírito resignado, mas cheio de determinação, um jovem que naquele mesmo dia completava 45 dias de isolamento dentro de um hospital, quebrado exceto com as visitas que fazia ao H. U. Onofre Lopes, para submeter-se aos procedimentos de hemodiálise? Eduardo há 3 anos fora acometido por um tumor na bexiga.


Como considerar justificável o incômodo de alguém saudável, que estava no ambiente de trabalho, fazendo a "máquina da sociedade" funcionar e que mais tarde voltaria para casa e encontraria ao seu dispor o suprimento de quaisquer necessidades afetivas ou materiais, tendo ali, ao meu lado, um jovem de idade aproximada, sofrendo as conseqüências do processo de quimioterapia, assegurado de soros, sondas e fraldas descartáveis, e com a mãe desempregada? Tal vergonha me roubou as palavras. Eduardo, numa sabedoria já pertinente, percebendo minha falta de graça, prosseguiu:

- Cada vez que eu me interno é uma experiência nova. Nessa, eu vi que é necessário tomar água. Mas que venham as próximas. Se Deus me trouxe isso, deve haver seu propósito.


A observação poderia ser um clichê. Um clichê de consolo. Sobretudo de fé. Que embora verdadeiro, nem sempre condiz com a revolta e a tristeza que moram no coração do falante. Mas nas palavras de Eduardo brotava uma espiritualidade que durante mais 2 horas fizeram-me não mais me sentir aqui, perto dos demais. Sem sombra de dúvidas, Eduardo não era mais um.

Procurando descontrair o papo e ser o mais natural possível, muito embora fosse impossível não perceber o meu deslocamento, perguntei-lhe sobre a sua namorada. Como se não bastasse, o namoro que há pouco mais de 1 ano Eduardo sustentava também era recheado de problemas. A família de Cristiane não aceitava o fato da moça namorar com um "doente", com um rapaz que sequer poderia ter filhos. Chegando a ameaçar a moça caso esta mantivesse o relacionamento.

- Hoje completamos 1 ano e 3 meses. Mais tarde ela vem me visitar. Veio todos os dias – Eduardo exclamou.
Para passar o tempo, propus que escrevesse uma carta à moça. Adiantei-me e peguei papel e lápis. Escreveu. Em suas entrelinhas, agradecia o apoio, agradecia por amar-lhe do jeito que ele era e prometia um amor eterno. Na verdade, tudo que viesse de Eduardo não podia pertencer ao mundo carnal.

Convidou-me para ir ao seu leito e mostrar alguns escritos que havia produzido no período de internação. Ajudei-lhe com o soro e fomos até a enfermaria. Chegando lá, deitou e pediu que eu apanhasse o caderno que estava sobre a cadeira. A cadeira que também apoiava um gibi e um livro de biologia. Achei curioso este último, visto que em detrimento da doença tivera que abandonar a escola. Perguntei-lhe o porquê de ler aquela apostila.

- Quero fazer a faculdade de medicina. Quero ser doutor e trabalhar aqui, no hospital.

Levei o caderno à cama e as palavras que dalí saíram me tocaram com tamanha profundidade. Na primeira página, estavam dispostas bem assim:

“Deus. Quero te agradecer porque em 2008 tu me tiraste da cama e me fizeste nascer de novo. Muitas vezes ainda não sei como agradecer. Mas agradeço pelas dores. Pelas sondas. Pelas cirurgias e pelos sangramentos. A missão não terminou.”

Qualquer pessoa que não conhecesse o jovem e recebesse aquele caderno, acharia que a ironia e a revolta embalavam aquelas palavras. Agradecer essa tempestade de sofrimento? Como assim? Resolvi prosseguir na conversa.
- É que eu não posso desistir. Se há 2 anos Deus me trouxe quase 2 meses de UTI e não me trouxe a morte, porque traria agora? Eu vou até o fim.

E parecia bem coerente o seu pensamento. Em 2008 Eduardo fora desenganado pelos médicos. Enfrentou um coma de 18 dias e ao acordar só reconhecia a mãe. Não detinha os movimentos nem conseguia falar.

- Lembro que quando não conseguia falar, pedia minha voz de volta. Eu queria louvar. Eu queria pregar.

Em troca, Deus, a divindade que Eduardo entregava e resgatava forças, devolveu-lhe uma voz que hoje comanda o microfone da banda que o rapaz faz parte. E presente muito bem utilizado. O jovem a utiliza para no mínimo dar conforto às pessoas com quem convive.

Na página seguinte, outro escrito me chamou atenção:

“Deus, te apresento Guilherme. Quero vê-lo saudável como as outras crianças. Tem misericórdia de sua humilde vida.”

Guilherme era uma criança de 6 anos portadora de leucemia e que há 3 meses se encontrava em estado grave, internado. Perguntei a Eduardo se diante de tanto sofrimento ainda sobrava tempo para pensar nos outros. A enfermeira que trocava o seu soro naquele momento, apressou-se em responder:

- Ora se não! Antes de ontem, sangrando, ainda teve força para confortar a mãe de Ítalo.
Em tal situação, Eduardo, mesmo em crise, houvera chamado a mãe da criança em seu quarto, orado e cantado para ela. Na letra da canção, falara algo mais ou menos assim:

“(...) porque nada demais vai acontecer além do que Deus planejou para você...”

Horas depois Ítalo veio a óbito. Mas suas palavras, sem dúvidas, fizeram a diferença.

Eduardo tentou melhor se acomodar na cama e o lençol com que se enrolava descobriu a fralda descartável. Fiquei constrangido. E mais uma vez, na sua naturalidade fora do comum, ele gargalhou, e embora já sabendo a resposta, perguntou:

- Que é que foi?

- Como você ver o fato de hoje estar usando uma fralda descartável? – perguntei, desarmado.

- Já esqueceu das surpresas de Deus? – retrucou.

Franzi a testa. Respondi.

- É que nunca quando pequeno tive condições de usar fraldas descartáveis. Mas olhe como são as coisas. Hoje, com 16 anos, eu posso vestir uma!

Rimos. Eu realmente não mais estava no mundo real. E já que havia citado sua infância, pedi que me falasse sobre ela.
Eduardo era um dos 7 filhos de Nívea, 45, lavadeira, embora desempregada. Começara a trabalhar aos 6 anos, como engraxate. O trabalho entretanto não fora motivo para deixar de estudar. O que realmente lhe fez aos 14 anos largar a escola foi a doença, que começou com uma dificuldade para urinar. Internou-se no H. Santa Catarina, e uma ultra-sonografia identificou a profunda massa que ocupava sua bexiga.

Quando indagado sobre a imagem que o Varela representava para ele, o jovem não mais me surpreendeu:

- Luz. Muita luz. Tudo que a gente quer, se estiver no alcance deles, eles fazem por a gente.
Ainda quis saber se havia alguém que lhe tivera marcado no tratamento. E quando eu achava que Eduardo já havia me apresentado todos os valores mais nobres existentes no universo, ele ainda lembrou da gratidão.

- Muita gente. Mas Gisele, que hoje é enfermeira do Pavilhão 2, foi muito especial para mim. Lembro que quando ainda não tinha descoberto a doença, pedia ajuda, ela vinha, cantava hinos religiosos e alisava onde estava a dor até eu dormir. Até hoje, quando vem me visitar, faz uma grande festa.

Papo vai. Papo vem. E o estado de ecstasy mais se elevava. O tempo passava e sem me tocar, havia perdido a reunião. Depois de tanto aprendizado com Eduardo, impossível não pensar de imediato que havia sido providência de Deus. O relógio já marcava 10:50, quando a mãe do meu amigo chegava. A cumprimentei, parabenizei o fato de ser mãe de uma criatura daquelas e ela falou o que eu já imaginava saber.

- Ele tem a força de todos nós juntos.

Concordei com a cabeça. Eduardo interrompeu e pediu que a mãe buscasse na bolsa uma foto de seu estado em 2008, abatido, careca (muito embora ainda estivesse) e pesando seus míseros 34 quilos. O retrato era chocante.

- A gente anda com essa foto para dar força às pessoas que estão em tratamento. Eu sei que ainda estou doente, mas olhe como eu já estive.

Atrás da fotografia, as palavras de Eduardo: “Deus fez um milagre em minha vida”

E fará muito mais. Perguntei sobre os seus planos para o futuro e ele não hesitou:

- Depois que ficar doutor e vir trabalhar aqui, quero casar com Cristiane e ter filhos. Sendo que o doutor ainda está em dúvidas se eu posso ou não ter filhos por causa da radioterapia. Mas sem problemas. Eu posso ser pai. Posso adotar. – Riu. Para Eduardo não existiam problemas.
A porta do quarto se abriu e a médica trazia a notícia de que o meu amigo receberia alta. Ele sorriu e agradeceu a Deus. Comentei com ela sobre a minha admiração e ele nos interrompeu:

- As pessoas precisam valorizar a vida. Já pensei em desistir, mas parece que há uma força maior que eu. Eu nunca fui um menino de desistir fácil. Mas você saber que tem uma doença e que a qualquer momento pode morrer não é simples. É só acreditando e tendo a certeza de que há um controle maior que o seu que as coisas podem se confortar no seu coração. Se eu não tenho fé em Deus, eu não tenho esperança.

Saí daquele quarto tão desnorteado quanto um astronauta que passa 3 meses no espaço e pisa na terra pela primeira vez. Não sabia se agradecia a Deus por ter me presenteado com uma manhã daquela ou se sentia mais e mais vergonha por tantas vezes que julguei como problemas algumas meras situações que passava. Conhecer Eduardo fora, nos meus 18 anos, um dos momentos mais marcantes, e que sem dúvidas, me servirá de lembrança e de força para o resto de minha vida.
Quase 2 meses depois da conversa, Eduardo marcou uma celebração religiosa no hospital. No dia anterior ao evento, internou-se de emergência e para nós, os demais seres-humanos, aquilo seria impedimento. No outro dia, com sonda, soro e dor, Eduardo fez questão de celebrar o que tinha marcado. Cantou. Falou. Orou. A sonda até vazou e o incômodo lhe envolveu, mas ficou lá, em pé, fazendo o que mais amava. Envolver de luz quem naquele momento também precisava. Mães e crianças enfermas acompanhavam. Médicos. Enfermeiros. Psicólogos. ASG´S. A equipe inteira teve o privilégio de ver, naquela manhã, a manifestação de uma força. Fosse ela Deus, fosse ela qualquer outra divindade, fosse ela o destino, a ciência ou a natureza. Mas uma força que sem dúvidas, existe.

Terminado o culto, Eduardo subiu para o quarto e a crise aumentou. Dias depois, foi transferido para o H. U. Onofre Lopes e lá está até agora, já há mais de 1 mês. Na UTI, recebendo sangue e sendo submetido a procedimentos cirúrgicos. E todas as vezes que meu coração aperta, suas palavras me vêm à cabeça:

“Nada demais vai acontecer além do que Deus planejou para você...”

Muito obrigado, amigo!

sábado, 3 de julho de 2010

"A Identidade, por favor!"


Dentro do meu repertório de sonhos, eis então um que não era tão alto. Bastava ter ao meu favor tempo, para o dia chegar, Deus, para que eu pudesse chegar até ele, e calma, para conseguir esperar. Ser maior de idade! Poxa! MAIOR de idade! É isso! Eu sou responsável, agora judicialmente, por todos os meus atos.

Acordei cedo. A propósito, como essa data há muito já havia sido planejada, cuidei da logística das coisas. Procurei não fazer a barba, comí as panelas para reduzir essa aparência desembrutecida e, como quem não quer nada, encontrei-me alí, de frente ao espelho. "Eu tenho cara de um MAIOR de idade? O que mudou tão intensamente em mim para que entre a noite de ontem e a manhã de hoje eu não seja mais o mesmo?".

A singeleza desse sonho pode ser comparada a um mosaico. É como se eu juntasse pedaços e mais pedaços de pequenas situações, aparentemente sem muita importância, e resultasse num quadro que só mais aumentava a minha ânsia pela espera desse dia. Não entenderam?

"Bom dia! O senhor já possui o Cartão Riachuelo?". Ao escutar a célebre frase, batia-me um misto de sentimentos. Alegrava-me pensar que aquela vendedora, cuja proposta era fazer um contrato com um indivíduo MAIOR de idade, oferecia-me o cartão. Ou seja, para ela eu parecia estar dentro dos critérios para a efetuação da venda. Por outro lado, uma reparável tristeza contrastava com essa alegria. Não que o motivo fosse deixar de ter o cartão para realizar as compras. Nesse aspecto os meus pais me salvariam. A tristeza era ter que responder e, principalmente, lembrar, que não podia efetuar o contrato porque a minha idade ainda não permitia isso.

Situações do tipo eram rotineiras, tornaram-se comuns. Mas no verão deste ano, um caso especialmente me enfureceu. Era o dia 20 de janeiro, quarta-feira, às 22h, hora em que a noite começa a acordar, e conversava com Lissa, minha prima, num pub da cidade, quando um garçom nos chamou a atenção. "Por favor, poderiam-me apresentar algum documento de identidade?". Entreolhamo-nos assustados. De início, a idéia da menoridade não passara nem perto de nossas cabeças. Será que a polícia nos procurava? Estavam nos confundindo com algum foragido da justiça? Eu? Lissa? Nós? Pus a mão no bolso e só me restava o celular, o dinheiro e um cartão que, por sinal, não era da Riachuelo. Tratava-se do cartão de consumo do bar. Lissa, contudo, na mesma. "Não estamos com nenhum documento, colega. Algum problema?" perguntei pacificamente. "Sim! A partir das 22h a casa não permite a permanência de menores de 18 anos sem que estejam acompanhados de algum responsável.", ele respondeu, rasgando-me por dentro como quem corta rodelas de tomate de uma só vez. "Como assim? Você está querendo insinuar que nós somos menores de idade?" respondi, esquecendo a passividade. Pisaram no meu calo! "Não, meu senhor...". Gostei do "senhor"! "É que preciso que vocês me comprovem que possuem idades realmente iguais ou maiores que 18 anos.", ele rebateu. "Ah, é? Então você vai passar de cliente em cliente, perguntando, inclusive , pro senhor da mesa à frente, se ele está com o documento de identidade?", insisti. Lissa me olhou desolada e vi que não adiantava persistir na batalha. Eu mesmo estaria cavando o nosso buraco. Fomos ao caixa e pagamos a conta, exigindo não pagar o couvert, visto que o show mal acabara de começar. E como se o constrangimento não bastasse, vimo-nos no meio da rua, sem simplesmente ninguém para nos levar em casa. A família inteira veraneava naquele momento, bem longe da gente. Olhamos para um lado. Para o outro. Nos olhamos. Dei um sinal. Largada a corrida! 3 minutos de uma maratona 500 km/h, rezando incessantemente a cada passada. Cruzamos a Prudente, atravessamos a celestial Praça Cívica, e, aliviados, chegamos em casa. Lissa, ainda sem fôlego, exclamou "Ufa! Nascemos de novo!". Tomei um susto, desesperei-me e rebati "Não! Pelo amor de Deus! Mais 18 anos não!".

Ter a compainha de meus pais na hora de assinar qualquer contrato também foi uma constante. Mas isso, ao contrário, jamais me incomodou. Nesse aspecto, toda a problemática se contrasta. Pois se a condição para tê-los alí, ao meu lado o tempo inteiro, fosse ser menor de idade, eu, sem dúvidas, abriria mão da maioridade. Não que me sinta alguém dependente. Independente também não. O que acontece é que essa responsabilidade me garantia a presença permanente deles. Mas bem os conheço e sei que embora agora eu seja realmente responsável pelos meus atos, eles continuam aqui, ao meu lado. Eles continuam aqui, dentro de mim.

Acompanhar-me ou pelos menos procurar compainhas mais maduras sempre foi uma de minhas caracteríscas. Nunca, em momento algum, estive completamente satisfeito com minha idade e é por isso que o sonho dos 18 anos acabou se agigantando. Vou, por fim, aproveitá-lo. Aproveitá-lo enquanto posso, pois me conheço e sei que não tardará para os 21 estarem nos meus planos. Os 25 em seguida. Os 30, logo após. Os 35 ainda vão. Os 40, menos sonhados. E depois... a vontade dos 14, 15, 16 e 17 finalmente aparecerá. Eita! Bateu uma nostalgia agora...

Enfim, agora, MAIOR de idade, vou fazer jus ao sonho. Passarei milhões de vezes pela porta da Riachuelo, escutarei milhões de vezes a vendedora perguntar "Bom dia! O senhor já possui o Cartão Riachuelo?", e milhões de vezes responderei "Não. Não tenho o cartão da loja. Mas não é que eu seja menor de idade. Não! Eu tenho 18 anos! É que estou um pouco ocupado agora. Vou assinar a um contrato, depois preciso ir à auto-escola, e depois vou àquele Pub que a partir das 22h só permite MAIORES de idade. Fica para depois, certo?"

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Arraiá Felizcontente


O Projeto Felizconto promove, pela primeira vez, o Arraiá Felizcontente. A ação ocorrerá nessa sexta, dia 18, às 14h, no H. I. Varela Santiago.

O evento tem a realização dos voluntários do projeto. Se você deseja ser parceiro dessa festa, entre em contato conosco. Doe. Se doe!


8741 0537 - Victor

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Projeto Felizconto. Quem somos?


Junho de 2009. Mês em que o sonho nasceu. Pré-vestibular. Pouco restava tempo destinado às atividades que me realizavam por completo. Ficar longe dos palcos, textos, ensaios e daquela rotina para mim essencial era quase que tortura.

Duas semanas foi o período dado no ano letivo para que os alunos pudessem usufruir de recesso. Não houve outra! Senti que o tempo precisava ser bem empregado e, na verdade, ele foi muito mais que isto. O tempo me permitiu dar origem a um projeto que aflorou ainda mais a minha sensibilidade, me fez um cidadão ainda mais consciente de minha função social e um ser-humano ainda mais investidor do amor por intermédio da solidariedade.

Em princípio chamada de "Embola", a ação foi programada de maneira que na primeira semana das férias os ensaios de um espetáculo infantil pudessem acontecer e os dias seguintes fossem ocupados pela apresentação deste em 5 instituições de caridade. Assim foi feito. Juntei-me com três amigas, também envolvidas com o trabalho teatral, e no mini-prazo montamos a peça "Embola História", cujo roteiro tratava da junção de três contos: "Chapeuzinho Vermelho", "João e Maria" e "Procura-se um Príncipe". Em 40 minutos de apresentação, sentíamos o puro envolvimento das crianças e o quanto era simples levá-las por alguns instantes a mundos extremamente lúdicos.

Terminado o proveitoso recesso,a correria de pré-vestibulando voltou à tona. No meu coração, entretanto, a lembrança dos sorrisos mais singelos e agradecidos não permitia que eu deixasse para trás um projeto assim.

Janeiro de 2010. Aprovado no vestibular, não mais havia pretexto para estacionar o voluntariado. Com o desencontro de horários, acabei, infelizmente, tendo que levar o projeto só, mesmo reconhecendo mais tarde que, na verdade, eu, no meio de meu generoso público, também estava bem acompanhado. Estava completamente envolto por amor, carinho, encanto e admiração.

Agora chamado de "Felizconto", o projeto traz como roteiro uma contação de histórias onde o personagem Teco, em pouco mais de 20 minutos, representa, através de recursos teatrais, as histórias "Bom Dia, Todas as Cores", de Ruth Rocha, e "As Maçãs Mágicas", de minha autoria. Terminada a contação, são desenvolvidas atividades que se relacionam de alguma forma com as histórias, e crianças, pais e funcionários acabam por deixar sem perceber a imaginação dar o comando.

Com primeiras edições no Hospital Infantil Varela Santiago, o projeto engatinhou e passou a visitar demais instituições de caridade. Chegamos ao Orfanato Nosso Lar, no bairro de Lagoa Seca, e ao Centro de Educação Infantil Mãe Sinhá, em Parnamirim. Bem recebidos, colorimos por corridas horas a dura realidade de inúmeras crianças.

Ter sempre ao meu lado pessoas que apostam e compram os meus sonhos comigo é primordial. Familiares e amigos se envolveram no projeto de maneira estimulante. Fosse por doação de materiais, fosse por doação de amor, ou de pura entrega. Em visitas, o projeto também recebe voluntários que se engajam de alguma maneira no trabalho. Não houve uma edição que eu precisasse de amigos comigo e que estes não estiveram à disposição. A todos o meu muito obrigado.

Depois de 20 edições, o projeto vem se organizando e ganhando forças com o apoio de parceiros humanizados e realizadores de sonhos. Para o próprio voluntário, o retorno é mais que valioso. Somente o fato de saber que é útil e importante para alguém que precisa dele já é em muito encantador.

Hoje, a inserção do "Parceiro Felizcontente" acontece de diversas maneiras. As atividades são divididas entre grupos, de maneira que, quando unidos, possam realizar as edições do projeto:


1) Voluntariado de Animação

A ação se dá pela visitação dos voluntários às instituições e à execução de atividades recreativas com o público atendido.


2) Voluntariado de Apoio

Também requer a visita do voluntário às instituições e consiste no apoio deste quanto aos serviços necessários para o evento, seja na cozinha, seja no transporte, seja na montagem de estrutura, na limpeza, ou na instalação de recursos utilizados no evento.


3) Voluntariado de Produção

A este voluntário é dada a função de promover, divulgar, bem como reunir os integrantes para o planejamento de programação. Também compete a ele o agendamento de horários, a apresentação do projeto e o cadastramento das instituições.


4) Voluntariado Financeiro

Consiste na doação de materiais utilizados pelo projeto nos eventos. Para isso, uma lista de material é sistematicamente divulgada e o voluntário pode arcar com algum tipo de contribuição.


As visitas hoje ocorrem semanalmente, sendo intercaladas entre o Hospital Infantil Varela Santiago e o Orfanato Nosso Lar. Em breve daremos início às edições também em outras instituições. O integrante pode engajar-se em mais de um serviço voluntariado.

É de maneira singela que conseguiremos transformar a nossa sociedade. É tentando, de início , envolver de amor o meio no qual estamos inseridos para que o afeto seja expandido e o mundo possa, ainda, mudar para melhor. É possível ver tudo o que está acontecendo e ficar parado? Se temos acesso a ferramentas que podem ser usadas para as mudanças, porque não usá-las? Porque não engajar-se?


Para tornar-se "Parceiro Felizcontente", entre em contato conosco, através de projetofelizconto@hotmail.com. Contamos com você nessa empreitada por quem precisa da gente!


Victor Ferreira

Projeto Felizconto

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Engaje-se! Seja um amigo Felizcontente!


Há três meses o Projeto Felizconto arranca sorrisos em diversas instituições filantrópicas de nossa cidade.

Constituído essencialmente de uma lúdica contação de histórias executada pelo ator Victor Ferreira, fundador do projeto, este ainda recebe voluntários que atuam de diversas maneiras nas ações realizadas, sempre acrescentando e oferecendo um maior entretenimento às crianças atendidas.

Hoje funcionando de maneira sistemática no Hospital Infantil Varela Santiago e no Orfanato Nosso Lar, a ação ainda procura chegar a novas instituições, buscando a qualquer modo encantar e acalentar os pequenos corações.

Se você acredita na função social que o ser-humano tem para com o meio em que está inserido e aposta na transformação da sociedade por intermédio do amor, junte-se a nós! Seja um amigo Felizcontente. Os campos de atuação são diversos, mas o resultado um só: Gratificação.

Para melhor conhecer o projeto, receber nossa programação, ou aliar-se a nós, entre em contato conosco: projetofelizconto@hotmail.com


"A avaliação final da sua vida não será feita pela apreciação de quão bem você viveu, mas sobre quão bem, ou não, viveram outras pessoas por causa de você..." (Bill Gates)

terça-feira, 6 de abril de 2010

Falta sentido

"...Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção..." (Oswaldo Montenegro)

Desde que criado, o universo vem sendo berço de mudanças que mantêm viva a sua dinâmica. O mundo se adapta incessantemente às novas condições sem que haja um limite para as descobertas.

O tema é bem sugestivo se relacionado ao último artigo que aqui publiquei, onde tratei de uma mudança pela qual passei. Entretanto, não foi ele que me inspirou. Dias atrás, uma notícia me chocou e provocou até demais. A provocação não foi de reflexão, mas de absoluta repulsa. O Diário de Natal publicara a notícia de que um performer (artista que trabalha com a arte performática) houvera, durante a abertura do XIII Salão das Artes da Cidade do Natal, realizada no Nalva Melo Café Salão, retirado um rosário do ânus. O incômodo, primeiro, foi por saber que a arte, criada para progredir e elevar o intelecto do nosso povo, vem sendo instrumento de regressão. Depois, por ser artista, e reconhecer que dentro de nossa classe há tamanha barbárie. De ante mão, vale ressaltar que o que aqui escrevo nada faz referência ao artista que executou o trabalho, mas ao resultado que essa forma de expressão artística e a manipulação da arte contemporânea, em geral, vêm trazendo. Melhor, não trazendo...


Qual grande transformação ocorreu na nossa sociedade de forma instantânea e drástica? Qual foi a revolução que se deu do dia para a noite modificando realmente e totalmente o ser-humano e o meio no qual estivesse envolto? Nem Napoleão, na inovadora e gigante Revolução Francesa, mudou o sistema num piscar de olhos. Havia, antes de tudo, toda uma bagagem que tornava favorável a mudança e esta, antes de mais nada, era coerente. Ou seja, o que quero dizer é que não há transformação sem singeleza. Não é de forma brusca que uma lagarta vira borboleta.


A Performance tem origem ligada a movimentos de vanguarda. As apresentações, inusitadas, procuram levar o público a uma reflexão, em geral sobre os valores modernos, e não poupam irreverência e questionamentos. Há no artista contemporâneo uma crítica de si mesmo, de maneira que se generalize, visto que ele pertence a uma sociedade. Na arte dramática, este chega a construir meios-personagens, numa mistura que confunde e mal-delimita, em cena, quem é ator e quem é personagem. Acredita que essa proximidade íntima com a sociedade moderna possa levá-la a uma reflexão. De primeira instância, louvável, visto que se faz necessária a revisão dos valores distorcidos. O que está acontecendo, entretanto, é que em vez de permitir tal reflexão, as manifestações só confundem, chocam e afastam o público do teatro.


De que maneira vamos conseguir uma platéia viva e satisfeita se não procurarmos usar de sua linguagem? Se não procurarmos colocar a reflexão como conseqüência de nosso trabalho e não como condição para que ele seja feito? Porque não usar do humor? Porque não usar da clareza? Porque não usar da leveza? Isso! Leveza! Um público que vai ao teatro já tem por si só as tensões do dia-a-dia. Entrar numa sala de espetáculos e se ver tensionado por cenas confusas e incoerentes é demais! Paciência! Queira sim, queira não, a arte é um comércio. E se não o público, quem nos sustentará? A própria classe?


Não é a toa que os espetáculos de humor, as boas histórias e os grupos conceituados lotam os teatros de nossa cidade. Público nós temos sim! O que falta é uma compreensão para com esse público e uma vontade de chegar até ele.

Não me interpretem mal, por favor. Não estou dizendo que devemos manter os valores perdidos e agüentar calados as aberrações da sociedade sem usar da arte como um meio de protesto. Jamais! Seria uma crueldade, visto que é do artista ser engajado. O que eu ponho em questão é a forma como fazemos esse protesto. Se o envolvermos de doçura, bom-humor, leveza e, principalmente, entretenimento, chegaremos a uma resposta muito mais rápida e lucrativa. Para o público, um programa realmente agradável. Para o artista, admiração e apreço ao seu trabalho.

quarta-feira, 24 de março de 2010

A mim, um presente.


Nunca foi de meu repertório, muito menos interesse, discutir religião, crença, cultos ou ícones, visto que vejo a fé como algo superior a tais pontos e pouco dependente deles no ponto de vista espiritual. Entretanto, venho hoje compartilhar uma vivência. Um testemunho? Será? Pretendo que não! Não confundam! Acredito que a descoberta de forças maiores é algo que vem de dentro e o que tenho a lhes falar é somente uma partilha.

Há pouco mais de 1 mês, o relógio marcava os últimos minutos do sábado e eu vagava pela internet quando a chamada para a audição de elenco do espetáculo "A Paixão de Cristo" me apareceu entre tópicos numa comunidade do Orkut. O teste aconteceria às 8h do dia seguinte. Sem muita perspectiva, programei o despertador.

Domingo. Nenhum som me desperta. Às 8:15h acordo, olho o relógio, e vejo que o melhor a se fazer é continuar a dormir. A chuva escorre na janela e um sono enorme me convida à cama. Durmo. Volto. Uma força muito maior me move à tomar banho, arrumar-me e ir pegar ônibus na parada mais próxima. A água não permite. Sem problemas, meu pai acorda e se dispõe a me deixar.

Na audição, encontro poucos amigos e inúmeras pessoas enturmadas e pertencentes à comunidade católica responsável pelo espetáculo. Poucos eram os papéis restantes para atores e o teste focava o elenco para dançar uma história que antecedia a "Paixão" em si. Por via das dúvidas, fiz. Já estava por lá. Faltava-me desejo para pertencer ao elenco, mas algo me movia a continuar por alí. O teste ocorreu. Passei. Dias depois, já me encontrava à dar pulos e jogar braços numa corrida coreografia.

Aquilo estava me custando caro. As manhãs de domingo eram ocupadas pelos incessantes ensaios e conseqüentemente, os sábados a noite também. Paralelo a tudo, comecei a sentir de início um vazio que precisava ser ocupado urgentemente.

Longe de mim qualquer crise existencial. Sempre fui centrado e bem resolvido por demais para agora entrar em conflito por sentir-me assim, com um vazio sem explicação. Ao mesmo, os ensaios me tomavam de uma forma que cheguei a acordar querendo que a noite vinhesse o mais rápido possível e junto à todos eu pudesse sentir uma paz no meu coração. Por ironia, a história que contávamos ainda se tratava de essência, de desejo, de prazeres imediatos, e, sem muita formalidade, toda minha técnica, toda minha preocupação com o meu ego artista, se foram, e o que alí eu ilustrava, alí eu sentia como se aquele vazio precisasse ser descrito, colocado para fora.

Por alguns momentos, pus-me a rir. Nunca acreditei em transformações promovidas pela Igreja em si. Mas alí eu descobri que isso, na verdade, é o de menos, e que eu precisava, a qualquer custo, viver aquilo. Por muitas vezes, cheguei aos ensaios dividido, com dúvidas que precisavam urgentemente de resposta, visto que nunca fizeram parte de mim. O próprio fato de estar dentro de uma instituição religiosa me incomodava, visto que uma crosta de alguns preconceitos ainda me era pertencida. E alguém, parecendo tudo adivinhar, soltava respostas ao ar. Como se eu as houvesse realmente pedido. Orações, que antes para mim não passavam de um culto superficial, agora me tocavam de uma maneira que preenchiam por alguns instantes o vazio que eu guardava aqui dentro.

Não que eu tenha mudado, que eu tenha me convertido ou abandonado todos os prazeres carnais.Eles também me fazem bem. Minha essência, acredito, sempre foi essa. Mas pude, com o processo, aprender que acima deles há um mundo infinitamente maior e que pode, sem dúvidas, me tornar completo.
Hoje, quarta-feira, aguardo como nunca a estréia de um espetáculo. Brincadeira. Já tive projetos de responsabilidade inteiramente minha ou de infinita participação e preocupação para mim, mas hoje, a responsabilidade que sinto, é para com minha essência, é para com as energias que eu quero vibrar. No primeiro domingo de ensaio, machuquei a garganta. Domingo retrasado, lesei o calcanhar. Domingo passado, fraturei o dedo midinho. Me pus a pensar o porquê de tais problemas, logo eu que preciso demais viver tudo isso. E compreendi que os mesmos não pagam um décimo do crescimento que hoje recebo. Segunda, por palavras soltas, alguém, tocando no gesso, me falou - "É pra mostrar que você é muito mais que isso..." - e isso, para mim, valeu todo o resto.

A mudança que hoje sinto em meu coração não foi instantânea nem fácil. Custou-me melancolia, falta de paciência e imcompreensão por muitos momentos, mas foi dentro deles que eu pude me olhar no espelho e perguntar o que estava errado, onde eu estava errando, e que se tudo que eu tinha para mim era esse corpo de pouco menos de 60 quilos, e ainda mais, se ela seria meu para sempre.

Meu coração, hoje, enche-se de alegria, ao saber que sou mais, e ainda melhor. Que ao meu redor fitas e fitas de amor me envolvem. O amor de meus pais, familiares, o amor de meus amigos, o amor dos que me querem bem, e um amor espiritual tão intenso, que me deu todos os amores antes ditos como intermédio de sua grandeza.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Distância.com


Há dias conversava com um senhor de aproximadamente seus 60 anos e este relatava que no posterior final de semana lhe esperava o 35 reencontro de sua turma de faculdade, ocorrido anualmente e dotado da presença de todos os antigos universitários. Quase todos, aliás. O tempo vinha se encarregando de aos poucos levar componentes à outros planos e, quem sabe, mais tarde, promover os reencontros na imensidão. O senhor comentava que o contato entre os amigos permanecera constante desde a conclusão do curso e, mesmo num tempo em que os meios de comunicação eram precários, a separação não foi motivo de isolamento.

Pus-me a pensar como isso podia realmente acontecer, visto que os emails não fariam as chamadas, o Orkut não permitiria uma discussão de onde poderia ser realizada a comemoração, as sms no celular não trariam os lembretes para quando a data se aproximasse e o Msn não manteria constante o contato. É mesmo possível que há 35 anos a turma de faculdade se reencontre?

Ao mesmo tempo, a velha reflexão sobre a superficialidade dos relacionamentos que atinge a modernidade também me veio à cabeça. Talvez, há 35 anos, a turma mantenha laços firmes de amizade, lealdade e companheirismo. Laços que as redes de comunicação atuais, mesmo permitindo a instantaneidade das informações, não pode construir. A tecnologia cada vez mais produz avanços que proporcionam a maior integração dos homens e estes, em contrapartida, cada vez mais se isolam em mundos só seus. Mundos, que muitas vezes, não passam de uma rede virtual.

Quer dizer que o problema está aí? Talvez. É tão mais simples discutir à distância, visto que os olhos não se cruzam. É tão mais simples dizer a mentira à distância, visto que não existe o corpo pra denunciar. É tão mais simples dar recado à distância, visto que o marasmo é uma constante do nosso tempo. Já peguei-me milhões de vezes à me comunicar com meu irmão por uma rede de mensagens instantâneas, estando ele não mais longe que no quarto ao lado. E nisso tudo, onde fica a troca dos calores humanos? Há realmente uma maior interação entre os povos ou há uma maquiagem que proporcione tal interação? Uma maquiagem até de emoções, digamos.

Voltemos à turma reencontrada. No tempo que se formou, os sentimentos ainda eram reais. Eram completos. E foi a verdade deles que moveu os amigos, mesmo sem recursos comunicativos a seu dispor, a continuarem assim, em amizade.

Mais uma controvérsia se soma às diferenças absurdas de nossa sociedade. E não culpemos a ciência, a tecnologia ou as descobertas contemporâneas por isso. Santos Dumont não criou o 14Bis à fim de ser instrumento de guerra. Falta ao homem saber utilizar o que lhe é oferecido para, assim como a turma do senhor meu amigo, manter laços verdadeiros de afeto e companheirismo. Aos avanços tecnológicos, somarão-se os avanços espirituais.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Ainda que


"Ainda que a métrica não esteja definida
Nem as estrofes obedeçam o padrão
Aqui vão os meus versos
Os versos do meu coração...



Ainda que

(Victor Ferreira)

"Ainda que os valores se percam
Que os números enfim prevaleçam
E os homens sejam o que têm
O amor não se foi de vez

Ainda que barreiras separem nações
Bombas arrasem multidões
E guerras sejam rotineiras
O amor não se foi de vez

Ainda que se tenham excluídos
Que o preconceito não seja banido
De tolerância não se ouça falar
O amor não se foi de vez

Ainda que de fome morra gente
Que penalizem os inocentes
E a miséria seja comum
O amor não se foi de vez

Ainda que o dólar não tenha alta
As especulações estejam em falta
E a Bolsa ameace quebrar
O amor não se foi de vez

Ainda que roubem os políticos
Que os poderes estejam corrompidos
E livres estejam os maus
O amor não se foi de vez

Ainda que aqueçam a terra
Que destruam as florestas
E a fauna entre em extinção
O amor não se foi de vez

Ainda que se mate por pão
Que vidas disputem o lixão
E trapos confudam homem e bicho
O amor não se foi de vez

Ainda que o tráfico domine favelas
Que mães acendam velas
E morram jovens em varejo
O amor não se foi de vez

O amor pois está escondido
Quem sabe até perdido
Procurando onde possa ser rei

Em pedaços se dividiu
E de singelo repartiu
A felicidade no mundo inteiro
No sorriso de uma criança
Numa troca de alianças
Ou no desabrochar de uma flor
Este não se esquivou

Colheu como quem colhe flores
Procurou os momentos mais doces
Para poder se apresentar
Sem muita exuberância
Dispensou a arrogância
Só assim se fez achar

Ainda que o amor caia
Ainda que o mal aja
E ainda que seja pouco o freguês
Ele não perde o encanto
Está em algum canto
O amor não se foi de vez..."



















sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010


"Dormir bem para viver melhor! 1,93 x 2,03 m de puro progresso e conforto. Além de desfrutar da magia magnoterapêutica e do benéfico poder da Freqüência Quântica, você ainda conta com o melhor em matéria de conforto, padrão de qualidade, resistência e durabilidade. O colchão bioquântico traz em sua composição homeopática a prevenção contra doenças cardíacas, tensões musculares e problemas respiratórios. Ainda é dotado de ação antiflamatória, aliviando dores e diminuindo inchaços. Promove a renovação celular e possibilita uma maior comunicação entre células nervosas. Previne e combate o estresse. Elimina toxinas do organismo, proporcionando um sono profundo e reparador. Acelera a recuperação nos processos traumáticos e pós-operatórios. Diminui a acidez do sangue, auxilia nos casos de fibromialgia e colabora nos tratamentos osteoarticulares. Toda essa grade de benefícios por apenas 12.000 $! É isso! 12.000$! Tenha o sono dos seus sonhos!" (Folheto publicitário)


"Sinha Vitória pensou de novo na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se acostumado, seria mais agradável dormirem numa cama de lastro de couro, como outras pessoas (...) Outra vez sinha Vitória pôs-se a sonhar com a cama de lastro de couro (...) Sinha Vitória desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual à de seu Tomás da Bolandeira. (...) Bem. Poderiam adquirir o imóvel necessário economizando na roupa e no querosene." (Vidas Secas - Graciliano Ramos)


Quando um folheto publicitário me veio às mãos ontem, em cujo conteúdo se revelavam as milacrias promovidas por um colchão mágico, o drama da família protagonista de Vidas Secas, obra de Graciliano Ramos, e o pequeno sonho da matriarca, uma cama de lastro de couro, me permitiram uma comparação instantânea sobre a dimensão que os sonhos vêm tomando. Aliás, se estão deixando de existir para dar lugar a um consumismo cada vez mais intenso e de relevante dimensão na vida dos nossos cidadãos.

Graciliano, quando pensou nas perspectivas que a personagem Sinha Vitória traria, de maneira a generalizar os sonhos do Brasil Miserável, não exagerou nem viajou demais. O móvel igual ao de Seu Tomás da Bolandeira que viesse a substituir a cama de varas repleta de lombos em sua composição, traria a felicidade para a mãe de família. Uma felicidade pura.

A felicidade, porém, que Sinha Vitória sentiria, seria de igual proporção à felicidade com que alguém deitaria no colchão bioquântico? Trocando em miúdos: alguém que pode dar doze mil reais em um colchão, acreditando nos seus poderes medicinais, sentiria o mesmo prazer ao lhe adquirir? A vontade de possuir tal produto é tão pura e despretenciosa quanto a de se possuir uma tão distante cama de lastro de couro? E a distância que lhes separa? A mesma? A publicidade que o colchão traz talvez já não conheça o quanto de perturbações se acompanham seus usuários e sua busca pelo livramento à qualquer custo das enfermidades que, na verdade, estão cravadas na alma?

Acredito que se fosse hoje escrever, Graciliano ainda insistiria na discussão social. Sabendo de tal colchão, revelaria quantos milhões de indivíduos dormem entre pontes e papelões e quantos podem desembolsar as mil dúzias de reais para a compra do artigo. Em entrevista sobre a obra, mostraria que a Casas Bahia lhes oferece a partir de 80,00 $ e que 1 colchão de ilusões equivale a 150 colchões de necessidade.

Se não deixasse a ousadia de lado, e os valores não fossem poupados, perguntaria se a solução para a euforia do homem moderno estava de fato no consumo. Perguntaria se a queda na Bolsa de Valores, a subida do dólar e os ajustes salariais desvantajosos poupariam o milionário, mesmo deitado no tapete de Aladim, do estresse e dos problemas cardiovasculares. Com ajuda do IBGE, Graciliano compararia a expectativa de vida do frenético homem urbano com a do humilde cidadão rural. E os leitores se perguntariam se é uma cama imperial que realmente traz qualidade de vida.

E o público ainda pensaria se alguém dara os 12.000 com esforço ou se o investimento tivera sido feito porque o consumidor não mais tinha com o que gastar. A este, mandaria emails com dados conscientizadores, parecidos com o da Casas Bahia, e lhe indicariam alternativas mais humanas para o emprego de seu dinheiro.

Voltemos ao anúncio. Ao anúncio somente. Visto que Graciliano não mais escreve, Sinha Vitória se distribui em milhões pelo mundo e as camas de lastro de couro continuam sendo outros milhões de sonhos. E é bem provável que sejam muito mais desejadas do quê os colchões de ouro. A conscientização não existe, o consumismo cresce e a felicidade, coitada, mais cara e inalcansável pros que mais podem adquirir o resto das coisas.



sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Ufa!


Sinto, há 25 dias, o prazer e o alívio que me proporcionou a aprovação no vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) no ano de 2010. É sobre esse sentimento e os precedentes dele que resolvi escrever hoje, visto que entrar numa universidade pública é um sonho pertinente à maioria dos estudantes.


"O que vais ser quando crescer?" virou bordão. Ninguém perde a oportunidade de perguntar a uma criança o que ela planeja para o seu futuro. Não me incluo fora do grupo. De maneira alguma! Diversas vezes já me peguei questionando meu irmão caçula sobre suas pretensões para tempos que virão. A resposta, na maioria das vezes, correspondeu às minhas expectativas - "Ator de teatro. Vou ser artista!" - da mesma maneira que correspondeu às do nosso outro irmão - "Vou ser jogador de futebol!" - ou às do nosso pai - "Vou ser o que você é!". Simples, não? Lembro-me que anos atrás, Hugo, irmão do meio, revelava - "Serei guarda de trânsito de dia. Jogador de futebol à tarde e, à noite, astronatura!" - Perceberam o conflito? Não é brincadeira. Por incrível que pareça, há quem fique à beira da inscrição para a grande prova em confusões parecidas. Fruto de quê? De uma personalidade mal resolvida ou de uma sociedade que nos pressiona desde pequenos a vivermos dentro das expectativas?


O ano de pré-vestibular, para quem o vive realmente (no sentido da preparação!), é exasperante e inquieto. Atribulada à rotina sufocante, há a responsabilidade de sabermos que a dedicação dada a ele e o tamanho desta vão permitir uma conquista de tamanho imensurável, pelo menos até agora, já que ainda não posso falar das posteriores. Relatam que a conclusão dos cursos e a aprovação em concursos liberam uma mesma dosagem de adrenalina e satisfação. O fato é que quem concluiu uma faculdade ou passou em concurso público, viveu, sem dúvidas, a prova de fogo para entrar na universidade e se acompanha, portanto, de certa experiência. Os pré-vestibulandos não. É como saltar de um penhasco a outro sem conhecer o abismo que os separa.


Do sistema de educação infantil ao sistema de ensino médio os estudantes não são poupados. O conteúdo dado é o exigido pela prova (de fogo!) e poucos conhecimentos realmente servirão para o resto da vida. Não é surpresa passar no vestibular e logo em seguida esquecer as essenciais fórmulas de Baskara, os princípios de Le Chatelier ou os macetes da geometria analítica. E não culpemos nossa mente por isso! Ela está em seu devido trabalho, selecionando o que realmente nos é necessário para uma vida inteira. Do que seriam as notícias das Bolsas de Valores, das enchentes em São Paulo ou dos terremotos no Haiti se a mesma estivesse ocupada em guardar todas as tão desnecessárias informações? Quanto aos valores morais, nem se fala. Poucas são as instituições de ensino que lhes têm na grade curricular. "Ai" dos nossos jovens se o vestibular os cobrasse!


Quanto à conciliação entre a razão e a emoção, conflito presente principalmente no dia da prova, sem comentários. 3 dias podem simplesmente julgar um jovem que desde a infância se prepara para a avaliação? É possível que alunos realmente dedicados sintam-se tranqüilos em saber que todo o desgaste tenha sido talvez em vão? É possível que alunos sem perscpetivas e pouco preocupados com a carreira acadêmica sintam-se aflitos e tensionados com a prova feita à toa? E nesse jogo de controle emocional, para quem realmente fica a vaga? Se o vestibular é desde cedo trabalhado em sala de aula, que seja desde cedo executado também. Avaliações anuais às quais os alunos submeteriam-se gradativamente trariam melhores e mais justos resultados.


Peço desculpa aos pré-vestibulandos de 2010 pela tensão que talvez tenha transmitido no texto, mas acreditem que ainda há, em tudo isso, algo positivo. É fato que não se cresce na zona de conforto. Talvez o gosto de ver o nome na lista de aprovados não fosse tão valioso se não existisse toda essa carga que o ano traz. Vivam-no realmente, entregando-se de corpo e alma a uma avaliação que, mesmo parcialmente irracional, lhes acarretará o título de universitários.



segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Sem saída


São evidentes e constantes as disparidades sociais que se apresentam no cenário de qualquer cidade. Para seus cidadãos, entretanto, as cenas se incorporam ao dia-a-dia da sociedade de forma costumeira e intrínseca, como um elemento de caracterização do local. Em cidades como a nossa, então, que a estrutura ainda pequena não permitiu a completa mistura entre classes diferentes, pouco podemos fazer uma real comparação. Para tal, ir à uma cidade maior e observar o quão grande é um abismo social torna-se inevitável.

Com destino à virada de ano em Recife, deparei-me com uma metrópole repleta de figuras que denunciaram a limitação da participação social de seus cidadãos. A princípio, algo novo me chocou. Os luxuosos prédios ilhavam-se em favelas e barracos ornamentavam os pés de majestosas construções. Mãe Luiza e Areia Preta, lá, não se dividiam. Fundiam-se em ambientes onde ficava claro que o espaço para o desfrute de um bem-estar não é abrangente.

O que aqui vos conto, no entanto, não é restrito a metrópoles nem ambientes específicos. Trata-se de sentimentos. Sentimentos universais. Diferenciados somente pelos contextos nos quais estão inseridos. Tristeza, frustração e desejo.

Posterior à virada, o passeio teve como destino um parque aquático da cidade. Após um dia inteiro de toboáguas, piscinas, cachoeiras e brincadeiras diversas, uma grade que separava o parque da praia de Maria Farinha, à frente, tornou-me atração. Não que me divertisse com isso, mas minha atenção foi tomada por completa. Um grupo de crianças carentes, com idades aproximadamente entre 7 e 12 anos, observava de fora o movimento que transbordava alegria dentro do clube. Num misto de sentimentos, prendiam-se alí, com as cabeças entre os canos da grade que suas mãos seguravam.

Havia nelas um desejo imenso de poder sentir o que se refletia no sorriso de tantos outros indivíduos. A tristeza, tal qual a frustração, tomava conta dos meninos que sabiam ser a distância que lhes separava do parque muito maior que aquela imposta pela grade. Os sentimentos sombrios, todavia, abafavam-se na alegria com que assistiam às aventuras permitidas pelos brinquedos. Conformavam-se em observar atentamente as expressões faciais, os urros de prazer e as declarações de emoções que ali escutavam sair dos que podiam usurfruir do parque. "Maneiro!", "Do caramba!", "Que frio na barriga!". Porque eram diferentes?

À noite do mesmo dia, o destino foi um notável fastfood no bairro no qual estávamos hospedados e meu irmão caçula, que também havia passado o dia no parque aquático, encontrava-se conosco. A lanchonete abrigava um pequeno playground, que lhe despertou vontade de brincar, naturalmente. Após toda a maratona enfadonha de água e desgaste, não havia quem se despusesse a lhe acompanhar nas instalações do parque. Assim sendo, nossa mãe vetou que brincasse naquele momento. A mesma frustração sentida pelas crianças de horas antes então se revelou no espírito de um menino cheio de oportunidades e mimos. Postei-me a observar. A distância que o separava daquele playground era tão grande quanto a que separava os meninos de outrora daqueles toboáguas? E a conformidade? Era a mesma? O que os confortava, talvez?

Os meninos confortavam-se com as emoções dos que podiam desfrutar do parque. Conformavam-se com isso, e a idéia de poder sentí-las era distante, quase inexistente. O meu irmão contentava-se em saber que dentro de poucas horas acordaria e teria outros parques, até maiores, à sua disposição. Nos dois casos, contudo, a tristeza, a frustração e o desejo se faziam presentes.

Pude assim compreender que os sentimentos desprezam quaisquer preconceitos. Desprezam quaisquer outras diferenças. Pude compreender que os sentimentos são abrangentes e universais. Pude compreender que os sentimentos jamais poderão ser tratados da mesma maneira como se tratam as diferenciações econômicas. Pude compreender que a dor não se esconde para um menino de favela. Pude compreender que a dor não se esconde para um menino de poder.